Às vésperas da visita do presidente Jair Bolsonaro a Moscou na próxima semana, a diplomacia russa tenta recolocar sobre a mesa a negociação para a compra de um sistema de defesa antiaérea russo, o Pantsir.
Em outubro, o vice-diretor para cooperação militar e técnica russo, Anatoly Punchuk, disse à agência de notícias Tass que a compra do sistema ainda estava em jogo.
A negociação, que vem desde 2013, foi registrada oficialmente no comunicado da última reunião da Comissão de Alto Nível que reúne os vice-presidentes brasileiros e os primeiro-ministros russos. Este encontro, que aconteceu em 2015, reuniu o então vice-presidente Michel Temer e o primeiro-ministro russo, Dmitri Medvedev.
Temer esteve na Rússia dois anos depois, na condição de chefe de Estado, mas não efetivou a aquisição. Em abril será a vez de Hamilton Mourão presidir a oitava reunião do gênero no Rio. O vice-presidente, porém, não acredita que a negociação avance.
E a razão que apresenta é a condição adquirida pelo Brasil de “aliado preferencial extra-Otan”, nome dado aos países que usufruem de acesso privilegiado na compra de equipamento militar americano e em treinamentos pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan)
Confiras os principais trechos:
“o vice-presidente brasileiro falou sobre as tensões no Leste Europeu e as relações econômicas entre russos e brasileiros. Em sua opinião, nas tensões na Ucrânia, “todo mundo tem razão”.
“Putin pressiona para a Ucrânia não aderir à OTAN [Organização do Tratado Atlântico Norte] porque faz parte da linha vermelha que vai do Mar Báltico aos Montes Cárpatos”, comentou.
Mourão avalia que a visita oficial de Jair Bolsonaro ao presidente russo Vladimir Putin não deve ser um problema para a diplomacia brasileira. Segundo ele, será uma oportunidade para Putin “mostrar que não está isolado”.
Mourão disse ainda que o Brasil “não tem participação direta” na situação, e reforçou a posição brasileira no Conselho de Segurança da ONU. “O Brasil se posicionou claramente em defesa de uma saída pacífica para o conflito”, afirmou.
O vice-presidente também descartou a possibilidade de o Brasil comprar material militar da Rússia neste momento. A razão para isso, segundo o vice, é a proximidade do Brasil com a OTAN.
“A razão principal é a condição do Brasil de parceiro preferencial extra-OTAN. Sinceramente, acho difícil. Não vejo nenhuma simpatia dos meios militares brasileiros a qualquer acordo nesse sentido”.
A seguir, a entrevista concedida pelo vice-presidente, por telefone, ao Valor:
Valor: Os russos formalizaram interesse em vender um sistema de defesa anti-aéreo ao Brasil há anos. Há alguma chance de esta proposta avançar nesta viagem do presidente Jair Bolsonaro a Moscou?
Hamilton Mourão: Não somos compradores de material bélico russo. A última grande compra foi de helicópteros, feita pelo então ministro da Defesa, Nelson Jobim (2007 -2011). Na América Latina são poucos os países que o fazem, Venezuela e Peru, talvez. Tem problemas de manutenção. Mas a razão principal é a condição do Brasil de parceiro preferencial extra-Otan. Sinceramente, acho difícil. Não vejo nenhuma simpatia dos meios militares brasileiros a qualquer acordo nesse sentido.
Valor: A confirmação dessa viagem em meio à escalada de conflitos entre a Rússia e os Estados Unidos não torna essa viagem um inconveniente diplomático para o Brasil?
Mourão: O Brasil não tem participação direta nesse conflito. Nossa posição foi explicitada no Conselho de Segurança da ONU pelo embaixador do Brasil nas Nações Unidas, Ronaldo Costa Filho, pela autodeterminação dos povos e em defesa da soberania dos países. O Brasil se posicionou claramente em defesa de uma saída pacífica para o conflito.
Valor: Como o senhor interpretou a pressão americana contra a viagem?
Mourão: Os Estados Unidos exercem seu poder de dissuasão. Sempre foi assim. Não sei qual o verdadeiro teor da conversa de [Anthony] Anthony Blinken [chefe da diplomacia americana] com o chanceler Carlos França. Mas está tudo dentro da normalidade. A viagem não vai causar nenhum tipo de constrangimento.
Valor: Putin não ganha uma oportunidade de mostrar boas relações com um país de tradicionais relações com os Estados Unidos?
Mourão: Putin certamente poderá mostrar que não está isolado. Mas nessa briga todo mundo tem razão. Putin pressiona para Ucrânia não aderir à Otan porque faz parte da linha vermelha que vai do Mar Báltico aos Montes Cárpatos, que funciona como zona de amortecimento até a Europa. Se formos analisar desde as guerras napoleônicas, a Rússia foi invadida a cada 33 anos. Isso está na memória do povo. A Rússia original do século 12 e 13 é em Kiev na Ucrânia. Depois é que, por pressão mongol vai para Moscou.
Valor: O senhor quer dizer com isso que é natural que Putin queira a Ucrânia fora da Otan?
Mourão: Não vou emitir opinião sobre algo que é do interesse nacional russo, mas hão de encontrar uma solução que preserve a soberania da Ucrânia de uma região ligada histórica e economicamente à Rússia.
Valor: O comunicado conjunto entre Rússia e China fala menciona os Brics. O senhor entendeu esta menção como expectativa de apoio político do bloco à aos russos?
Mourão: China e Rússia exercem seu poder diante do tabuleiro geopolítico. Juntam-se para enfrentar o aliado comum que são os Estados Unidos, mas os Brics não tratam de defesa, é uma aliança comercial. A China tem problemas na área de defesa com a India. No ano passado houve conflito com mortes. Não é simples o relacionamento, como também não é automático o apoio europeu aos Estados Unidos. Alemanha e França estão reticentes
Valor: A Europa está procurando fornecedores alternativos de energia para o caso de um conflito prejudicar o fornecimento de gás russo. O Brasil foi consultado?
Mourão: De fato, 47% do gás consumido na Europa é russo. Os Estados Unidos estão aumentando o gás exportado para a Europa, mas acho difícil que o Brasil seja requisitado a entrar nisso
Valor: A Argentina entrou na Rota da Seda. Isso não a coloca numa situação de vantagem frente ao Brasil na relação com a China?
Mourão: Temos uma parceria estratégica com a China em que os investimentos já estão contemplados. Sempre deixamos claro que não haveria necessidade de aderir à Rota da Seda. Não devemos esquecer que a Argentina também é Mercosul. São três os países que estão fora da Rota da Seda na América do Sul, a Colômbia, pelas relações históricas com os EUA, o Paraguai, pelas relações com Taiwan, e o Brasil, pelas dimensões. Não precisamos estar na Rota da Seda